(Recorrendo à Tropicália em exemplificações)
Enquanto a teoria crítica ia ganhando espaço junto a pesquisadores que não se identificavam com a pesquisa administrativa, surge, na França, a tradição culturológica de estudos da cultura de massa. As perguntas feitas por esta tradição são relativas à presença, no panorama cultural como um todo, da cultura de massas. Como ela vem se integrar às culturas já existentes (a cultura nacional, a cultura humanista e a cultura religiosa):
[...] a cultura de massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e de identificações específicas. Ela se acrescenta, à cultura nacional, à cultura humanista, à cultura religiosa, e entra em concorrência com estas culturas (MORIN, 1967, p. 18).
Dentro deste panorama, a cultua de massas tanto interfere nas culturas já existentes quanto é por elas contida, e “A esse título ela não é absolutamente autônoma: ela pode embeber-se de cultura nacional, religiosa ou humanista e, por sua vez, ela embebe as culturas nacional, religiosa e humanista” (MORIN, 1967, p. 18). Para Morin, as abordagens voltadas para a comunicação de massa impedem a compreensão desta complexidade da “cultura de massa”. Já em 1960, dois anos antes da publicação da primeira edição de O espírito do tempo, Morin defendia a idéia de que a cultura de massa, enquanto um conjunto de cultura, civilização e história, somente poderia ser abordada pelo método da totalidade (WOLF, 1995, p. 90).
Mas o que seria a cultura para Morin? No início do curso, lançamos mão da definição de cultura por ele apresentada em O espírito do tempo, e não será demais revê-la:
Podemos adiantar que uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções. Esta penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e identificação polarizadas nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores (os ancestrais, os heróis, os deuses). Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária; ela alimenta o ser semi-real, semi-imaginário, que cada um secreta no interior de si (sua alma), o ser semi-real, semi-imaginário que cada um secreta no exterior de si no qual se envolve (sua personalidade) (MORIN, 1967, p. 17).
E é neste jogo entre real e imaginário que, por meio de processos de identificação e projeção, onde entram em ação os arquétipos da estrutura imaginária, que a industria cultural encontra o desafio de superar a contradição “entre suas estruturas burocráticas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) do produto que ela deve fornecer” (MORIN, 1962, p.28). Então, na indústria cultural, a burocracia se opõe à invenção da mesma maneira que o padrão (o estandardizado) se opõe à individualidade
O imaginário se estrutura segundo arquétipos: existem figurinos-modelo do espírito humano que ordenam os sonhos e, particularmente, os sonhos racionalizados que são os temas míticos ou romanescos. Regras, convenções, gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às obras, enquanto situações tipo e personagens-tipo lhes fornecem as estruturas internas. A análise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas. Ora, toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial. A industria cultural persegue a demonstração à sua maneira, padronizando os grandes temas romanescos, fazendo cliches dos arquétipos em esteriótipos.
Praticamente fabricam-se romances sentimentais em cadeia, a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados. Também o coração pode ser posto em conserva.
Depois de ler um texto tão impressionante como o de Morin, é interessante nos lembrarmos de alguns trechos da canção Parque Industrial, de Tom Zé: “Tem garotas propaganda/ aeromoças e ternura no cartaz/ basta olhar para a parede/ que minha alegria num instante se refaz/ pois temos o sorriso engarrafado/ já vem pronto e tabelado, é somente requentar e usar”. Realmente, como disse Morin, nos primeiros anos desta mesma década (a década de 60) logo no início de O espírito do tempo, assiste-se a uma segunda industrialização, diferente daquela que aconteceu no início do século XX:
A Segunda colonização penetra na grande reserva que é a alma humana [...] A Segunda industrialização, que passa a ser a industrialização do espírito, a Segunda colonização, que passa a dizer respeito à alma progridem no decorrer do século XX. Através delas, opera-se esse progresso ininterrupto da técnica, não mais unicamente votado à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do homem e ai derramando mercadorias culturais. [...] Essas novas mercadorias são as mais humanas de todas, pois vendem a varejo, os ectoplasmas de humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma (MORIN, 1962, p. 15-16).
Ilustrativo e interessante ainda será notar como nesta produção da tropicália a industria cultural e a cultura de massa estavam sendo abordadas em alto nível. De acordo com Ismail Xavier
Neste momento, passamos de uma arte pedagógico-conscientizadora para espetáculos provocativos que se apoiavam em estratégias de agressão e colagens pop que marcavam a politização no Brasil, de protocolos de criação que, na origem (USA), tinham outro sentido. A ironia dos artistas privilegia a sociedade de consumo como alvo, num momento em que, no Brasil, há uma nova forma de entender a questão da industria cultural e o novo patamar de mercantilização da arte, da informação e do comportamento jovem, incluída a rebeldia. [...] Em sua montagem de signos extraídos de contextos opostos, o Tropicalismo promoveu o retorno do modernismo de Oswald de Andrade e combateu uma mística nacional de raízes, propondo uma dinâmica cultural feita de incorporação do Outro, da mistura de textos, linguagens, tradições. No cinema moderno brasileiro tal mistura é a tônica de cineastas como Joaquim Pedro, a partir de Macunaíma, Sganzerla, Ivan Cardoso, Arthur Omar e Julio Bressane, cuja obra é feita de invenções-traduções que convocam um amplíssimo repertório.
A cultura brasileira do final dos anos 60, digamos pós-Terra em transe, representou a perda de inocência diante da sociedade de consumo, e mobilizou o dinamismo do próprio mercado para tentar uma radicalização de seu poder dissolvente do lado patriarcal, da coisa de família, da tradição nacional (XAVIER, 1997, p. 54-55).
Em outro lugar Ismail Xavier coloca também que
As canções da Tropicália escandalizaram um “nacionalismo cioso de purismos artesanais da sonoridade brasileira; por outro lado, conseguiu, por certo tempo, manter um teor subversivo dentro da engrenagem do mercado através de uma reinvenção acelerada na composição das canções e nos seus modos de apresentação. O AI 5, decretado em dezembro de 68, interrompeu o fluxo dessa experiência de desconcertos. Enquanto pôde durar, esse processo singular sustentado em plena TV foi o laboratório de uma nova articulação de cultura e política, experiência-limite de perda de inocência diante da industria cultural.
No seu jogo de contaminações - o nacional/estrangeiro, alto/baixo, vanguarda/kitsch - o Tropicalismo pôs a nu o seu próprio mecanismo. Ou seja, chamou a atenção para o momento estrutural das composições, lembrando um tipo de efeito de estranhamento que ganha maior nitidez nas artes visuais e de mise-en-scène; as que, não por acaso, tiveram um papel fundamental para o impacto das canções (XAVIER, 1993, p. 20 – 21).
É certo que tal procedimento de evocar com tanta ênfase a tropicália, em uma abordagem das teorias da comunicação, da a impressão de um desvio excessivo. Não obstante iremos insistir e, desta forma, demonstrar a pertinência de tal estratégia. A estratégia estético-política da tropicália constituiu, em múltiplas instâncias, uma crítica prática e um uso singular da industria cultural e da cultura de massas. Olhando o comentário a seguir, vemos nas palavras de Carlos Calado uma demonstração, um dos exemplos possíveis, diante de muitos outros que não evocaremos, de como esta operação direta nas vísceras da cultura foi profícua e nos ilustra tão bem alguns aspectos da teoria culturológica (e da teoria crítica também):
Em Parque Industrial, alternou [calado refere-se ao maestro Rogério Duprat, arranjador do disco Tropicália ou Panis et Circencis] frases do Hino Nacional Brasileiro com um trecho do popular Jingle do analgésico Melhoral (CALADO, 1997, p. 194).
Podemos ver neste aspecto da obra de Tom Zé, comentado por Carlos Calado, como na ação estética da tropicália podemos assistir, com grande clareza, ao movimento de intersecção entre a cultura de massas e as outras culturas, tal como apontado por Morin. A cultura nacional, presente, nos signos musicais da canção - nas frases melódicas do Hino Nacional Brasileiro - devora (para evocar a metáfora antropofágica) e é devorada pela cultura de massas que, por sua vez, está também presentes nas frases melódicas do Jingle. A letra faz referência a cultura industrial quando fala que “o avanço industrial vem trazer nossa redenção”, e faz referência também à indústria cultural, quando a aeromoça e a ternura no cartaz figuram como “um sorriso engarrafado”. A cultura industrial e a industria cultural são saldadas: “o avanço industrial vem trazer nossa redenção!”
A magnífica canção de Tom Zé nos realmente nos faz ver como “Também o coração pode ser posto em conserva” em uma sociedade onde “Praticamente fabricam-se romances sentimentais em cadeia, a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados”. Logo em seguida no texto, Morin irá observar que, nesta fabricação norteada por arquétipos existe, simultaneamente, uma tendência contrária, que exige a individualização:
Existem técnicas-padrão de individualização que consistem em modificar o conjunto dos diferentes elementos, de modo que se pode obter os mais variados objetos a partir de peças-padrão de meccano.
Mas
Em determinado momento precisas-se de mais, precisa-se da invenção. É aqui que a produção não chega a abafar a criação, que a burocracia é obrigada a procurar a invenção, que o padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade.
Para Morin, não é possível haver uma integração total da criação em um sistema de produção industrial. O que acontece, no final das contas é que a industria cultural deve estar, a cada momento, superando constantemente “uma contradição fundamental entre suas estruturas burocráticas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) do produto que ela deve fornecer” (MORIN, 1967, p. 28). A industria cultural, para Morin, “opera a partir desses dois pares antitéticos: burocracia-invenção padrão-individualidade” (MORIN, 1967, p. 29).
A contradição ai enunciada é o que explica como podem coexistir, na indústria cultural “esse universo imenso estereotipado no filme, na canção, no jornalismo, no rádio, e, por outro lado, essa invenção perpétua no cinema, na canção, no jornalismo, no rádio, essa zona de criação e de talento no seio do conformismo padronizado”(MORIN, 1967, p. 31).
E Morin, ainda hoje, mantém tal posição no que tange à necessidade da originalidade na indústria cultural. Podemos constatar isto em um texto intitulado Uma mundialização plural, escrito neste ano de 2003 para um livro, organizado por Dênis de Moraes, que foi lançado no Forum mundial realizado em Porto Alegre:
Como eu expliquei em L’esprit du temps (Livre de Poche, Essais, nova edição 1983), não se pode produzir em série filmes ou canções idênticas, cada um deve ter sua singularidade e sua originalidade, e a produção faz necessariamente apela à criação. Muitas vezes a produção asfixia a criação, mas acontece de ela permitir obras-primas; a arte do cinema floresceu por todo lado, em todos os continentes, e tornou-se uma arte mundializada, preservando, ao mesmo tempo, as originalidades dos artistas e das culturas...” (MORIN, 2003, p. 352).
Quando se trata de arte e pensamento, para Morin, a mundialização cultural não é homogeneizante, “constituem-se grandes ondas transculturais que favorecem a expressão das originalidades nacionais em seu seio” (MORIN, 2003, p. 352). Já em O espírito do tempo - não é demais lembrar que esta obra foi publicada em 1962 - Morin falava de mundialização, fenômeno que hoje nomeamos Globalização. No capítulo intitulado A cultura planetária ele nos fala de como, no terceiro mundo “não são as transformações econômicas que, principalmente o progresso industrial, que transformam as mentalidades” (MORIN, 2003, p. 352). No terceiro mundo a industria cultural atua sobre as mentalidades antes mesmo de acontecer qualquer transformação socioeconômica. É como diz Ismail Xavier, “No imaginário da história, passamos, portanto, do centro à periferia, sem ter na prática jamais saído desta” (XAVIER, 1993, p. 09).
Em Cultura hibridas Nestor Garcia Canclini nos fala sobre a coexistência, na américa latina, do “culto”, do “popular” e do “massivo” dentro de um sistema contraditório e anacrônico, onde, em um mesmo espaço-tempo, temos o arcaico (pré-moderno, presente em aspectos como o baixo índice de alfabetização), o moderno e o pós-moderno. O que Canclini chama de culto pode-se aproximar, grosso modo, do que Morin chamava de cultura humanística; enquanto, aquilo que Canclini nomea como massivo, pode estar associado em alguma medida ao que Morin chama de cultura de massas; e finalmente, o popular tem afinidades com a cultura nacional na acepção que Morin dá ao termo. Tal ligação entre as teorias de Morin e de Canclini pode nos trazer para uma reflexão sobre os meios de comunicação de massa na realidade da américa latina. As constantes referências aos estudos de Ismail Xavier e aos prodígios estético-políticos da tropicália também preparam terreno para uma abordagem dos mass media no terreno nacional brasileiro. Mas dentro de nossa linha de preparação para concurso, não podemos nos afastar muito do que vai no livro de Mário Wolf. Sendo assim, passaremos então um rápido olhar sobre a tendência dos estudos das comunicações de massas que se deram no interior da tradição dos estudos culturais, onde reencontraremos conceitos apontados na introdução deste curso, tais como os de texto, dialogismo e contexto tal como formulados por Mikhail Bakhtin. Mas uma vez com os pés afundados nos estudos culturais, estaremos novamente em condição de retornar a questão do Brasil no contexto da problemática da industria cultural, da cultura de massas e dos meios de comunicação de massas.
Os estudos culturais
De acordo com Douglas Kellner, em A cultura das mídias, podemos observar notáveis semelhanças entre a abordagem da teoria crítica e a dos estudos culturais - pois ambas “desenvolvem modelos teóricos do relacionamento entre a economia, o Estado, a sociedade, a cultura e a vida diária, dependendo, pois, das problemáticas da teoria social contemporânea” (KELLNER, 2001, P. 49). Mas os estudos culturais irão subverter a distinção entre cultura superior e inferior, tão cara a teoria crítica. Nos trabalhos dos estudos culturais as produções culturais que se valem das novas tecnologias e que se situam no seio da cultura de massas, tais como o cinema, a televisão e a música popular, serão valorizadas. Kellner, evocando Aronowitz, observa que os estudos culturais acabam por tomar uma postura oposta a da escola de Frankfurt, quando acabam, no final das contas, deixando de fora a cultura superior (o culto em Canclini, a cultura humanística em Morin, grosso modo). É o mesmo preconceito às avessas: enquanto a teoria crítica rejeita a chamada cultura inferior (a “nova” cultura popular, que na verdade é uma indústria cultural na percepção dos Frankfurtinianos), os estudos culturais rejeitam a cultura erudita, ou cultura superior, ou o simplesmente o “culto”.
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